O Homem do Trem

21 de janeiro de 2018 - Inspiração e Reflexão

Alex Haley

Todas as vezes que meus irmãos, minha irmã e eu nos reunimos, inevitavelmente falamos sobre papai. Nós todos devemos nossos sucessos na vida a ele – e a um misterioso homem que meu pai conheceu num trem.

Nosso pai, Simon Alexander Haley, nasceu em 1892 e cresceu na pequena cidade agrícola de Savannah, no Tennessee. Era o oitavo filho de Alec Haley, um obstinado ex-escravo e meeiro, e de uma mulher chamada Queen.

Embora sensível e afetuosa, minha avó podia ser decidida, principalmente quando se tratava de seus filhos. Uma de suas ambições era que meu pai terminasse os estudos.

Naquela época, em Savannah, um menino era considerado “desperdiçado” se permanecesse na escola após estar suficientemente grande para trabalhar na fazenda. Por isso, quando meu pai fez 12 anos, Queen começou a massagear o ego do meu avô.

– Como temos oito filhos – ela argumentava -, acho que seria interessante “desperdiçarmos” deliberadamente um deles e mantê-lo na escola até terminar os estudos.

Depois de muitas discussões, meu avô deixou meu pai concluir o ensino fundamental. Mas obrigavao a trabalhar no campo depois das aulas. Queen, porém, não estava satisfeita. Ela começou a plantar sementes, dizendo que a imagem do meu avô alcançaria muito mais prestígio se o filho deles cursasse o ensino médio.

Mais uma vez sua insistência funcionou. O rigoroso velho Alec Haley entregou a meu pai cinco merecidas notas de dez dólares, disse-lhe que nunca mais pedisse dinheiro e o mandou de volta para a escola para cursar o ensino médio. Meu pai viajou primeiro numa charrete puxada por uma mula, depois pegou um trem – o primeiro que ele via – e finalmente desceu em Jackson, Tennessee, onde se matriculou no departamento preparatório da Lane College. A escola metodista de negros oferecia cursos até à faculdade.

Os cinquenta dólares de papai logo foram consumidos e, para continuar na escola, ele trabalhou como garçom, faz-tudo e ajudante em um colégio para meninos rebeldes. Durante o inverno levantava-se às quatro da manhã e ia acender as lareiras nas casas de famílias brancas ricas para que seus moradores acordassem com conforto.

O Pobre Simon, como era chamado, tornou-se uma espécie de piada entre os alunos por causa de sua única calça, seu único par de sapatos e porque estava sempre com sono. Frequentemente, era encontrado dormindo em cima de um livro escolar caído no colo.

A constante luta para se sustentar cobrou seu preço. As notas do meu pai começaram a despencar, mais ele foi em frente e terminou o ensino médio. Em seguida, matriculou-se numa faculdade da Carolina do Norte, onde se manteve com grande esforço durante os dois primeiros anos.

Em uma tarde gélida no final do segundo ano, meu pai foi chamado à sala de um professor e soube que tinha sido reprovado numa matéria que exigia um livro que ele não tivera dinheiro para comprar.

O jovem universitário sentiu-se derrotado. Durante anos dera o máximo de si e agora parecia não ter realizado nada. Talvez devesse voltar para casa, para seu destino de trabalhador no campo.

Porém, dias depois, chegou uma carta da Pullman Company informando que ele tinha sido um dos 24 universitários negros selecionados entre centenas de candidatos para trabalhar como cabineiro em vagões-dormitório de um trem durante o verão. Meu pai ficou eufórico. Aquela era uma oportunidade! Ansiosamente apresentou-se para o serviço e foi designado para um trem que ia de Buffalo a Pittsburgh.

Certa madrugada, o trem seguia chocalhando quando, por volta das duas da manhã, a campainha do cabineiro soou. Meu pai levantou-se rapidamente, pôs seu paletó branco e encaminhou-se para as cabines dos passageiros. Lá, um homem de boa aparência pediu leite morno para que ele e a esposa pudessem relaxar e dormir. Meu pai levou o leite e guardanapos numa bandeja de prata. O homem passou um copo através das cortinas do beliche inferior para a esposa e, enquanto bebia o leite, começou a conversar com meu pai.

As normas da Pullman Company proibiam terminantemente qualquer conversa além de “Sim, senhor” ou “Não senhora”, mas esse passageiro continuou a fazer perguntas. Quando meu pai voltou para o seu cubículo, o homem o seguiu.

– De onde você é? – perguntou. – De Savannah, senhor – meu pai respondeu.

O homem observou:

– Você fala bastante bem. Que trabalho fez antes deste?

Meu pai não quis dizer que estava pensando em abandonar os estudos e voltar para casa.

– Sou um aluno do A&T College em Greensboro, senhor.

O homem olhou para ele incisivamente, desejou-lhe boa sorte e voltou para a cabine.

Na manhã seguinte o trem chegou a Pittsburgh. Numa época em que cinquenta centavos era uma boa gorjeta, o homem deu cinco dólares a Simon Haley, que ficou profundamente agradecido. Durante todo o verão ele economizara cada gorjeta que recebia, e quando o emprego terminou tinha acumulado o suficiente para comprar sua própria mula e seu próprio arado, como imaginara. Mas de repente percebeu que suas economias poderiam também pagar um semestre inteiro na faculdade sem que fosse preciso fazer um único biscate, o que lhe permitiria dedicar-se mais aos estudos. Somente assim saberia que notas era capaz de tirar.

Ele voltou a Greensboro. Mal acabara de chegar no campus quando foi chamado pelo reitor da faculdade. Meu pai, muito apreensivo, sentou-se diante do grande homem.

– Eu tenho uma carta aqui, Simon – disse o reitor. E perguntou: – Quando você trabalhou como cabineiro, nesse verão, levou leite morno para um homem durante a madrugada?

– Sim, senhor – meu pai respondeu surpreso.

O reitor prosseguiu:

– Bem, ele se chama R.S.M.Boyce e é um executivo aposentado da Curtis Publishing Company, que publica o The Saturday Evening Post. Ele doou quinhentos dólares para pagar sua moradia, sua anuidade e seus livros durante todo o ano escolar.

Meu pai ficou pasmo.

A doação-surpresa não apenas permitiu que ele acabasse a faculdade, mas que se formasse como primeiro da turma. Isso o fez ganhar uma bolsa de estudo i9ntegral para a Universidade de Cornell, no estado de Nova York.

Em 1920, meu pai, então recém-casado, mudou-se para Ithaca com minha mãe. Foi fazer mestrado na Universidade de Cornell, e minha mãe se matriculou no Conservatório de Música de Ithaca para estudar piano. Nasci no ano seguinte.

Um dia, décadas mais tarde, os editores do The Saturday Evening Post me convidaram para ir a seu escritório em Nova York para conversar o meu primeiro livro, The Autobiography of Malcolm X ( A autobiografia de Malcolm X). Eu me sentia imensamente orgulhoso e feliz por estar sentado naquelas salas revestidas de madeira na Avenida Lexington. De repente, lembrei-me do senhor Boyce e de como sua generosidade me permitira estar ali, como escritor, entre aqueles editores. Então comecei a chorar. Simplesmente não consegui me controlar.

Nós, filhos de Simon Haley, frequentemente refletimos sobre o senhor Boyce e seu investimento em um ser humano menos favorecido. Sua generosidade beneficiou a todos nós. Em vez de sermos criados numa fazenda e trabalharmos como meeiros, crescemos numa casa com pais que tinham nível universitário, onde havia prateleiras cheias de livros, e orgulhosos de nós mesmos. Meu irmão George é diretor na U.S.Postal Rate Commission, Julius é arquiteto, Lois é professora de música e eu sou escritor.

O senhor Boyce caiu como uma benção na vida do meu pai. O que alguns talvez vejam como mero acaso, interpreto como a ação de um misterioso poder que trabalha para o bem.

E acredito que cada pessoa abençoada com o sucesso tem a obrigação de devolver uma parte dessa benção. Precisamos todos viver e agir como o homem do trem.

A caridade é encontrada em nossas palavras e ações, mas principalmente em nossas motivações. E, mais uma vez, seu âmbito ultrapassa o ato de dar dinheiro. Sim, o senhor Boyce de fato ajudou a pagar a educação do jovem Simon, mas isso não deveria ofuscar o fato de que ele também dedicou parte de seu tempo para conversar com Simon e para contatar o reitor da universidade. Ele proporcionou expectativa ao ver potencial num rapaz em quem os outros viam apenas um empregado e um copo de leite. Ele transmitiu confiança ao elogiar as habilidades verbais de Simon. Ele levou esperança a um jovem com muitas aspirações mas poucos recursos. Seus motivos eram puros, generosos e pródigos em bondade. E a maneira como a sua caridade se estendeu às gerações seguintes, aos filhos de Simon e aos filhos de seus filhos nos faz lembrar que ninguém pode saber qual é o alcance de um único ato generoso de caridade.

Deixe seu comentário