Uma Heroína no Inferno

25 de janeiro de 2018 - Inspiração e Reflexão

Autor: Lawrence Elliot

Um bando de crianças maltrapilhas permanecia tiritando de frio, expostas ao vento de uma área aberta do campo de concentração de Bergen-Belsen. Era a primeira semana de dezembro de 1944 – após terem conseguido sobreviver a quatro anos de guerra e muitos meses de detenção, essas poucas crianças judias estavam agora desesperadamente sozinhas.

Elas tinham assistido, em silêncio, seus pais e irmãos mais velhos serem colocados num comboio de caminhões da SS e levados embora. Ninguém dissera para onde eles estavam indo, mas algumas tinham ouvido, sussurrados, os nomes dos campos da morte: Auschwitz, Treblinka, Cheimno.

Depois de levarem os homens, os caminhões vieram buscar as mulheres. Enquanto os caminhões partiam as crianças mais velhas, agrupadas no vazio da escuridão, tentavam confortar os bebês que choravam.

Em uma barraca próxima, uma mulher chamada Luba Gercak sacudiu sua vizinha para acordá-la.

— Você está ouvindo isso? Uma criança chorando?

A resposta veio imediatamente:

— Não ouvi nada. Você está tendo pesadelos outra vez.

Luba fechou bem os olhos, tentando impedir terríveis recordações.

Ela tinha crescido em uma comunidade de judeus na Polônia. Ainda adolescente, casara-se com um fabricante de armários, Hersch Gercak, e tiveram um filho, lsaac. Ansiavam por mais filhos e por uma vida calma, mas a guerra começou e eles foram sugados em sua corrente mortal. Os nazistas colocaram os judeus da região em carroças puxadas por cavalos para uma viagem de horror para Auschwitz-Birkenau, o mais sinistro campo de concentração do sistema alemão.

Luba atravessou os portões segurando firmemente lsaac nos braços. Segundos depois, os guardas levaram a criança de três anos embora. Luba podia ouvir os gritos do filho, “Mamãe! Mamãe!”, enquanto o jogavam num caminhão com outros que eram jovens demais ou velhos demais para trabalhar. Logo o caminhão se afastou em direção às câmaras de gás. Dias terríveis se seguiram até o momento em que ela viu um caminhão arrastando o corpo sem vida de seu marido. Luba sentiu que não queria mais viver.

Porém, uma força interna não a deixaria sucumbir. Talvez Deus tivesse algum propósito para sua vida. Com a cabeça raspada e o número 32.967 tatuado no braço, ela conseguiu um emprego no hospital de Auschwitz, um prédio onde os doentes eram deixados para morrer.

Dias infindáveis e noites fantasmagóricas se passaram. Luba aprendeu alemão e mantinha os ouvidos bem abertos. Um dia, ouviu que as enfermeiras iriam ser enviadas para um campo na Alemanha e se ofereceu para ir. Em dezembro de 1944 foi enviada para Bergen-Belsen. Não havia câmara de gás nesse campo, mas havia subnutrição, doenças e execuções sumárias feitas em um horrível e eficiente centro de extermínio.

Com as forças aliadas se aproximando e a disciplina se desintegrando, as condições; já péssimas, tinham piorado. Cada vez mais caminhões traziam pessoas famintas para os alojamentos infestados de vermes.

Virando-se na cama, Luba ouviu novamente o choro de uma criança. Correu para a porta e parou aturdida ao ver um bando de crianças amedrontadas e com frio. Fez sinal para que avançassem e algumas cautelosamente se aproximaram dela.

— O que aconteceu? — Luba sussurrou. — Quem deixou vocês aqui?

Falando um pouco de alemão, um dos meninos mais velhos chamado Jack Rodri explicou que os guardas os tinham trazido sem lhes dizer para onde estavam sendo levados. A mais velha das 54 crianças, Hetty Werkendam, tinha 14 anos e segurava Stelia Degen, de 2 anos. Outras eram ainda menores. Levando Jack pela mão, Luba fez um gesto para que a seguissem.

Algumas das mulheres tentaram impedi-la de levar as crianças para o alojamento. Sabiam que por muito pouco os nazistas enfiavam uma bala na cabeça de alguém.

Mas Luba estava convencida de que aquela era uma missão que devia cumprir. Deixou as mulheres envergonhadas ao perguntar-lhes:

— Se essas crianças fossem seus filhos, vocês as mandariam embora? Pois elas são filhos de alguém. — E levou o bando de maltrapilhos para dentro.

Na manhã seguinte, Jack Rodri contou a Luba a história do grupo. No início tinham sido poupados das piores atrocidades nazistas porque seus pais eram importantes trabalhadores na indústria de diamantes de Amsterdã, e os alemães precisavam deles para lapidar as pedras preciosas. Os lapidadores e suas famílias eram enviados para Bergen-Belsen, onde os alemães separavam as crianças dos pais e as abandonavam onde Luba as tinha encontrado.

O coração de Luba se encheu de gratidão a Deus por ter lhe trazido aquelas crianças, dando novo significado à sua vida. Ela iria salvá-las do trágico destino que sacrificara seu filho.

Sabendo que não poderia esconder dezenas de crianças, contou a um dos oficiais da SS o que tinha acontecido.

— Deixe-me cuidar delas — disse, colocando uma mão em seu braço. — Prometo que elas não causarão problemas

— Você é uma enfermeira, o que quer com essa escória judia? — ele perguntou, irritado. Luba respondeu:

— Sou mãe também e perdi meu filho em Auschwitz.

De repente, ao se dar conta de que uma prisioneira segurava seu braço, o oficial da SS a esbofeteou com toda a força, derrubando-a ao chão. Luba se levantou com os lábios sangrando, mas não recuou.

— O senhor tem idade suficiente para ser avô — ela disse. — Por que quer prejudicar crianças inocentes? Bebês? Eles todos morrerão se ninguém cuidar deles.

Por alguma razão, o oficial se deixou convencer.

— Fique com elas, então, e que se danem! Mas Luba não estava satisfeita.

— Elas precisam comer alguma coisa. Deixe-me dar-lhes um pouco de pão. Mais uma vez ele cedeu e entregou-lhe um papel autorizando-a a pegar dois pães de forma.

A busca por comida se tornou o objetivo de cada dia, criando uma incessante ansiedade. A ração estipulada — uma fatia de pão preto e meia tigela de sopa magra — mal dava para evitar a inanição. Por isso, todas as manhãs Luba partia para fazer suas rondas pelo depósito de comida, a cozinha, a padaria, implorando por um pouco mais. As crianças se aglomeravam na porta quando a viam ainda longe.

— Lá vem ela! E está trazendo comida para nós!

Elas transferiram para Luba o amor que tinham pelas mães, porque era ela quem providenciava os itens essenciais, tratava delas quando ficavam doentes e cantava canções de ninar durante as longas e tenebrosas noites. Algumas crianças não compreendiam suas palavras, mas compreendiam seu amor.

Semanas e meses se passaram. Os prisioneiros de Bergen-Belsen sabiam que os Aliados estavam se aproximando e viam os alemães tentando se livrar dos corpos que se amontoavam pelo campo. Mas era uma batalha perdida. A disenteria se espalhava, deixando as crianças desidratadas, exauridas e vulneráveis à febre alta e às dores de cabeça causadas pelo tifo.

Em um alojamento próximo, uma outra criança de Amsterdã, Anne Frank, sucumbiu. Muitas crianças de Luba ficaram doentes. Ela ia de uma em uma, alimentando as que podiam comer, tocando suas testas com os lábios para ver se estavam com febre e distribuindo suas preciosas aspirinas às mais doentes. Rezava para que um milagre as salvasse.

Esse milagre aconteceu no dia 15 de abril de 1945, um domingo, quando uma coluna de tanques ingleses entrou em Bergen-Belsen. Os alto-falantes gritavam em meia dúzia de idiomas:

— Vocês estão livres! Vocês estão livres!

Os Aliados trouxeram remédios e médicos, mas era tarde demais para muitos. Havia milhares de corpos não enterrados espalhados pelo campo, e quase um quarto dos mais de 60.000 prisioneiros morreu após a liberação.

Mas, do grupo formado pelas 54 crianças encontradas por Luba 18 semanas antes, apenas duas não sobreviveram. Quando as sobreviventes estavam suficientemente fortes para viajar, um avião militar inglês levou-as para casa. Luba também estava a bordo e cuidou delas durante a viagem. Mais tarde, um oficial holandês escreveu: “Foi graças a essa mulher que as crianças sobreviveram. Nós, holandeses, lhe devemos muito pelo que fez”.

As crianças foram alojadas provisoriamente em um abrigo temporário enquanto esperavam por suas mães, quase todas também sobreviventes. A pedido da Cruz Vermelha Internacional, Luba acompanhou 40 órfãos de guerra de numerosos outros campos para a Suécia, onde recomeçariam suas vidas.

Luba também começou uma vida nova. Na Suécia, ela conheceu Sol Frederick, outro sobrevivente do Holocausto. Casaram-se e se mudaram para os Estados Unidos, onde tiveram dois filhos. Mas Luba nunca se esqueceu das “suas crianças”.

Quase todas prosperaram. Jack Rodri tornou-se um bem-sucedido empresário em Los Angeles. Hetty Werkendam dedicou-se à carreira de corretora de imóveis na Austrália e foi eleita a mais bemsucedida imigrante. Stella Degen-Fertig, anos depois, não se lembrava de Bergen-Belsen, mas sua mãe lhe contou o quanto ela devia a uma mulher chamada Luba.

Vários daquele grupo decidiram procurar Luba. Jack Rodri conseguiu localizá-la em Washington e, comovido, foi ao seu encontro. O mesmo fizeram muitos outros.

Numa radiosa tarde de abril de 1995, no 50º aniversário de suas liberações, cerca de 30 homens e mulheres, que tinham se visto pela última vez como crianças, reuniram-se na prefeitura de Amsterdã para prestar uma homenagem a Luba.

Com a voz embargada pela emoção, o prefeito da cidade, representando a Rainha Beatrix, entregou a Luba a Medalha de Prata por Serviços Humanitários.

Depois da Cerimônia, Stelia Degen-Fertig se aproximou e, lutando para manter a voz firme, falou:

— Penso em você todos os dias da minha vida. Minha mãe sempre me disse que tinha me posto no mundo, mas que eu devia a minha vida a uma mulher chamada Luba. E repetiu muitas vezes que eu não deveria jamais me esquecer disso. — Chorando copiosamente, abraçou Luba e reafirmou: — Eu nunca me esquecerei.

Abraçando-a, Luba olhou para os outros com os olhos cheios de lágrimas. Aquela era a sua verdadeira recompensa: estar com “suas crianças”, sentir outra vez o amor que as salvara — e a ela também — da sombra dos campos da morte.

Enquanto Luba via o medo nos olhos das crianças na noite em que as encontrou, as crianças descobriam uma fonte de esperança e abrigo nos corajosos olhos daquela que as acolhia. Porque Luba sabia quais eram os valores e os princípios que defendia e teve a coragem de se apegar a eles, mesmo arriscando a própria vida. É importante repetir que coragem não significa ausência de medo, mas a percepção de que existe algo mais importante que deve ser perseguido.

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